O gaúcho Paulo Scott, negro de pele clara como o protagonista de ‘Marrom e Amarelo’, fala sobre como o golpe de 2016 influenciou seu romance
Segundo escritor brasileiro a concorrer ao prestigioso prêmio literário inglês The International Booker Prize, ao lado de Raduan Nassar (indicado em 2016), o gaúcho Paulo Scott sabe da responsabilidade de estar na lista que traz 13 livros de diversos países.
Para além da resposta mercadológica – o livro ganha destaque nem livrarias e na imprensa, especialmente na Inglaterra – há também uma repercussão política. “A lente que se deslocará para a obra indicada desvelará a conjuntura sociopolítica que a cerca. Nesse sentido, há impacto também em relação ao que vem sendo escrito pelos pares contemporâneos do autor indicado. Não se circunscreve só à obra finalista. Toda a produção literária brasileira atual, que é diversa e extremamente corajosa, está em exposição”, afirma em entrevista a Carta Capital.
O romance indicado ao Booker é Marrom e Amarelo – lançado como Phenotipes, em inglês, com tradução de Daniel Hahn –, que foi publicado no Brasil em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (para o escritor, “uma personagem que abarcou, sob sua sombra, o que de pior há neste país”), e é protagonizado por um homem, como Scott, negro de pele clara, Federico. A trama é situada em 2016, no começo de um novo governo nunca nomeado que, para manutenção da política de cotas, desenvolveu um software de identificação e classificação por tons de pele.
O protagonista, que tem um irmão negro, faz parte de um grupo de discussão do governo que debate o uso dessa ferramenta polêmica. Federico, assim como outros colegas, é contra o uso do dispositivo. Embora seja, nitidamente, um romance a favor das políticas de cotas, Marrom e Amarelo não é panfletário. “A presença ampliada de corpos negros nas universidades brasileiras foi a maior revolução de nossa história até o momento. Essa presença é o que está ajudando, de verdade, depois dos horrores desses mais de 500 anos, o Brasil descobrir o que é e também o que, de fato, nos falta. As mulheres negras e a intelectualidade que expressam são as responsáveis diretas pelo destravar final dessa revolução”, diz.
O livro começou a ser escrito em 2012, ou seja, antes das manifestações de 2013, e, nesse sentido, parece até premonitório. Roberta, sobrinha do protagonista, é uma jovem militante que acaba presa a estava a caminho de um protesto por encontrarem com ela uma arma – que remete ao passado do pai e do tio. Scott explica que a trajetória política do país nos últimos anos acabou, obviamente, refletida na narrativa.
“O que mais impactou o livro foi o golpe político sob a regência de Michel Temer – nada mais emblemático da intenção de destruição da dignidade do povo brasileiro do que o documento Ponte para o futuro, nela está o marco que nos levou a Paulo Guedes, a Rodrigo Maia, a Arthur Lira, ali começou o pesadelo que as pessoas pobres e as da classe média vivem hoje em nosso país. O romance tinha uma das linhas programada para ser desenvolvida no tempo do ano de 2012 quando se instituiu a política das cotas, acabou passando para 2016.”
Lançado na Inglaterra e EUA no começo deste ano, Phenotypes teve uma acolhida bastante positiva, recebendo críticas elogiosas de jornais como The Guardian e The New York Times. Para o autor, uma das explicações para isso é que “o colorismo no Brasil e no Continente Americano, em geral, tem especificidades, molda um cenário que sempre desperta atenção de quem olha de fora as idiossincrasias do racismo no século XXI.”
Comparando o cenário do lançamento do romance, três anos atrás, aos dias de hoje, Scott acredita que “estamos todos ainda mais doentes com essa chegada desvelada dessa turma, desse presidente, ao poder”. E vai além: “Este ano é o ano de revisão da política de cotas para estudantes negros e indígenas. Será um ano crucial. Se não lutarmos, dentro e fora do parlamento, pela ampliação dessa política afirmativa, ela será extinta. Porque a verdade que só as pessoas negras e indígenas podem expressar é uma verdade muito assustadora para quem sonha em continuar sugando o Brasil e a sua riqueza até onde conseguir.”
Outra comparação que o autor faz entre o momento da escritura de Marrom e Amarelo e o presente é o tratamento da cultura pelo governo. “A atual conjuntura política do Brasil e suas desastrosas consequências na área da cultura são notadas pelo mundo inteiro. Toda expressão mais ampla da nossa produção cultural no estrangeiro contrasta com a percepção de que o país tem, neste momento, um governo que odeia a cultura, odeia o papel emancipadora da cultura e teme o poder e a alegria reveladora da cultura.”
No Booker, o autor concorre ao lado veteranos ganhadores do prêmio como a Nobel polonesa Olga Tokarczuk, e o israelense David Grossman, e estreantes como ele – caso da argentina Claudia Piñeiro, da japonesa Mieko Kawakami, e do coreano Sang Young Park. Os livros finalistas serão anunciados em 7 de abril, e o vencedor, em 26 de maio.